Mais uma sugestão de José João Loureiro, desta vez a milhares de kms de distância.
INTERVENÇÃO DIVINA (YADON YLAHEYYA)
Realizado por Elia Suleiman
França/Alemanha/Marrocos/Holanda/EUA, 2002 Cor – 93 min.
Com: Elia Suleiman, Manal Khader, Nayef Fahoum Daher, George Ibrahim, Jamal Daher, Lutuf Nuweiser, Riad Masarweh, Bassem Loulou, Salwa Nakkara Naaman Jarjoura
Nazaré: depois do Pai Natal ser perseguido e violentamente atacado por um grupo de crianças, somos apresentados ao dia-a-dia de diversas personagens, através de segmentos curtos e recorrentes. Mais tarde, acompanhamos E.S (Suleiman), nas suas viagens de casa para o hospital, onde visita o pai, mas sobretudo num terreno baldio, junto a um posto de controle entre as cidades de Ramallah e Jerusalém, onde se encontra com a namorada (Khader). Ele, vindo de Jerusalém, e ela, de Ramallah, estacionam os carros lado a lado e observam a rotina do posto de controle que se estabeleceu no meio das suas vidas. À realidade contrapõe-se a fantasia.
Elia Suleiman dirige um filme repleto de contra-sensos e de ironias, onde aborda uma situação séria e problemática através de quadros isolados plenos de humor burlesco, slapstick e até mesmo um pouco de pastiche: um filme rodado nos territórios palestinianos ocupados, seria um dos últimos onde esperaríamos encontrar (mais) uma referência a «The Matrix», numa cena cheia de efeitos visuais digitais, onde uma ninja à prova de bala desafia a gravidade e repele, com pedras, praticantes de tiro ao alvo israelitas.
Até perto de metade de «Intervenção Divina», um filme galardoado com o Prémio do Júri de Cannes em 2002, não encontramos nenhum fio condutor que permeie a sua narrativa. Depois de uma introdução surreal, com um Pai Natal a viver o seu pior pesadelo – as crianças não querem telemóveis nem pelaisetachiones; querem a sua pele! – somos levados pelas ruas de Nazaré e assistimos ao desenrolar de várias situações paralelas, que ficam com a respectiva conclusão suspensa. O modo de construir os planos não se afasta desta técnica, com Suleiman a recorrer frequentemente à extensão da acção para lá dos limites do enquadramento, deixando o espectador presumir os acontecimentos através de efeitos sonoros ou protelando a sua revelação e o efeito humorístico.
A partir do momento em que vemos as personagens de Suleiman e de Manal Khader a encontrarem-se regularmente frente ao posto de controle israelita estamos já perante um comentário mais directo e definido sobre o conflito israelo-palestiniano e sobre a forçada coabitação entre os dois povos ou, mais especificamente, entre os palestinianos e os soldados israelitas, cujo trabalho inclui suspeitar de tudo e de todos.
A partir deste momento, talvez se possa considerar que aquilo que vimos anteriormente deve ser interpretado como consequência da situação vivida naqueles territórios, depois de removermos os exageros humorísticos que envolvem os sketches precedentes, que, no fundo, nos mostram um povo cujo cerco resulta também num isolamento dentro do seu próprio grupo social e cultural, como se pode aferir pelo distanciamento entre os vizinhos, ilustrado pela cena com os sacos de lixo ou com os insultos camuflados por uma banal cordialidade de dentro do automóvel.
Seria muito fácil e, para muitos, justificável que um filme feito por um palestiniano tivesse uma natureza panfletária anti-israelita. O filme não o é, mas é, obviamente, anti-ocupação (como poderia não o ser?) Não há ódio contra um povo ou uma cultura, apenas incompreensão e frustração contra um modo de vida controlado do exterior. O humor e a fantasia surgem como meio de defesa contra essa agressão e o absurdo como a única resposta possível a uma situação que não deixa de ter tais contornos. Aliás, a sequência surreal em que “Arafat” viaja sem restrições até Jerusalém pode ser parcialmente inspirada por algo que Suleiman relata em entrevista à revista Sight and Sound (01/03): a execução de uma pintura por soldados israelitas. Isto é, o dilema colocado aos soldados sobre se deveriam ou não abater um balão poderá não ser tão irreal quanto parece à primeira vista.
O realizador explica também que não pôde estrear o filme em Ramallah porque a generalidade dos edifícios destinados a actividades culturais tinham sido destruídos e que a sala onde o filme deveria ter sido exibido foi igualmente atacada por soldados, que entraram, deram uns tiros para as paredes e roubaram o Dolby Stereo. É caso para dizer que para algumas pessoas nada é sagrado.
Sem comentários:
Enviar um comentário